quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Um sonho numa rapsódia em agosto

 


Na cena do sonho de Sonhos, Kurosawa lança o garotinho ele mesmo dentro do espelho. A cena é linda, quase uma pintura. Lembro que cruzar o vale da revolta liberta, pois só a paz regenera. Na dança no vale dos pessegueiros cortados, o espírito das árvores chora e dança o ritmo do norte, da morte que traz a eternidade, breve e sentida – qual o sentido da vida senão a comunhão com todas as pessoas, todas as almas em trânsito nesse planeta-escola que ensina e acolhe e cuja recíproca precisamos dar, agora, em meio ao fogo do egoísmo humano que arde o pantanal em chamas, que arde na insanidade da guerra, no abismo sepulcral emanado pelo ódio, na solidão duma vida em conflito. A neve é morna, o gelo é quente, a borrasca não cessa; inclemente. A existência não cessa; inexorável. Entidade faminta de desejo. Da pulsão diante do arremedo de sentimento que o medo permite entrever na entrelinha da vigília. Seria de Virgílio essa frase, ou de Dante; talvez Rimbaud, ou mesmo Cervantes? Sonho que sou um cavaleiro andante, a caminhar por entre delírios e lembranças, algum sangue e muita desconfiança: como é triste se perder na desesperança. Volto ao filme, “Sonhos”. Kurosawa era um poeta, atravessou o túnel que separa o mundo real do elemental e se ergueu às nuvens do inconsciente para traduzir luzes e sombras, a contradição primordial da busca do sentido, do devir. Penso em “Rapsódia em Agosto”, outro presente de Kurosawa à humanidade, em que chegamos próximos ao paroxismo como civilização, duas cidades que sumiram em segundos, evaporaram. Mas como fazer desaparecer a alma imortal? Deprimente depressão dum desejo de eliminação, nascido do pânico do desconhecido, da incompreensão, da alteridade. Hiroshima e Nagasaki renasceram, em meio a feridas abertas, em meio a destroços obscenos. A Terra renascerá. A humanidade renascerá. Pois o amor é a essência primeira, o impulso vital que nos move e inspira. Que a humildade possa invadir e corações e mentes e trazer o sopro vital, pois a era da regeneração se aproxima, e não há mais tempo para prescindir da paz.


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Marrakesh


 

das sombras da história

suave como seda

diamante memória

remonta ancestral vereda


sob o céu de exú

ressurgem olhos de tâmara

sinfonia no peito nú

segredos encerrados na câmara


tempo-espaço aberto

sonho-vigília vontade

tesouro é oásis no deserto

escaravelho decifra a verdade

refulgir

 


reflexos tantos que somos. reflexos dum tempo louco. gritos roucos. íntimos. soltos. o que vive no inconsciente, será tão indecente? inocente? o que não se quer ver, nem sentir, é o que nos move para além do devir. pra se libertar, se refundir. refulgir, sob sombras nascidas nas dúvidas. ressurgir, nas brumas sopradas pelo vento. fomentar, no sangue vertido pelos inocentes. recriar o mundo no repasto da humildade. espectros vagam na antesala da vigília. desejos acomodam a poeira no perfume dos sonhos bons. a noite é branda e também tormenta. a humanidade é imensa, embora tão displiscente. reflexos voam pela senda da senda da memória. agora me lembro: convidei a audrey pra jantar. por um momento me esqueço: ela é uma fotografia. que seja, o delírio é meu.

Profecia



Vertigem. Nem sempre é simples caminhar sob as nuvens. Mas não há como fugir aos desígnios vindos do espaço. No céu, a vida é mais azul. Há os raios da Lua para alimentar, O vento para refrescar. E as estrelas para fazer brilhar. Há também o medo de cair. Como se ele não houvesse também no chão. Abençoado seja quem sabe estender a mão. E dizer, seja o sim ou o não, com o coração. Renunciar ao peso. À culpa. Ao desprezo. Espalhar pelo mundo sementes de girassol, criar pinturas vivas, como Van Gogh. A refletir o Sol. Há mais: nunca devemos esquecer de flutuar. Leves como crianças a mergulhar no mar.

A bailarina

Edgar Degas

 A bailarina flutua

em seu suave idílio

com sutis gestos tatua

pura vibração, rebrilho.


A bailarina sonha

um mundo de belezas reais

num giro inspira a alma tristonha

num salto enseja viagens astrais.


A bailarina tem classe

reinventa na dor o clamor

nas pontas dos pés renasce

o céu alcança, no movimento do amor.




quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

o passado é uma roupa que não nos serve mais



penso em herzog
aqui na frente dos escombros
da casa em que vivia 
e de onde os algozes
o sequestraram
e levaram rumo ao martírio
no lugar onde devia haver um memorial
resta apenas o pó
- e a especulação imobiliária -
dum país cuja memória se
esvai, transviada em palavras
cínicas, cafajestes
daqueles que torturaram e
mataram e tristemente
voltaram, sinistros
recalcados
com seus coturnos
e sapatos bem engraxados
porém nada polidos
a esmagar verdades
liberdades
a concentrar rendas
e preconceitos

(...)

penso
e de tanto pensar
lembro de belchior
"o passado é uma roupa 
que não nos serve mais"

(...)

sinto
a natureza
em sua florescente beleza
sob o céu anil
raios de sol acariciam
minha face úmida
secam o sal
de meu lamento surdo
escurece o dia
poeira em nuvens de morte
índios abandonados à nenhuma sorte
cinzas e sangue se misturam
num pesadelo
num desatino
sem sonho nem poesia
sem direitos nem alforria
como a mais bela tribo
esmagada por ser inocente

(...)

sinto
e de tanto sentir
lembro de chico buarque
"amanhã, vai ser outro dia".

mulher moderna

Pagu

veludo azul
mar sem fim
em cada sul, um blue
perfume de jasmim

beleza sagrada
olhar celeste
gata rajada
o sol, ao leste

voz sibilina
respirar imenso
reluz, serpentina
sopro tão denso

te vejo num filme
de cassavetes
ou fellini
em uma, mil vedetes

voa, natural
primavera eterna
sonho inaugural
da mulher moderna


Camille Claudel


ego em ruptura: um ode o passado presente no futuro



(1)
tu vens, tu vens
eu já escuto
os teus sinais

(2)
envolta em brumas
ela surgirá
vinda da dimensão nova

(3)
encontro inevitável
sentimento imorredouro
sonho

(4)
o modernismo
de ser humano
transmutar

(5)
acima das formas
há o gênio
de Rimbaud

(6)
além do tempo
há a energia
de 22

(7)
além das máscaras
há a leveza de Pagú
verdade e liberdade

(8)
além dos excessos
há as linhas – setas
rumo ao futuro

(9)
dançando a polca
sobre o Atlântico
Warchavchik chegou para inaugurar

(10)
o novo tempo
Tarsila, Oswald
Mário – contratempo

(11)
a água
lavou
meus ouvidos

(12)
e ao ouvir
melhor
maior

(13)
escutei
o rumor
da cachoeira

(14)
percebi
o som
dos pássaros

(15)
e tudo
ficou mais claro
Abaporu, em meu peito nú

(16)
casa aberta
arte ampla
descoberta

(17)
fluxo d’água
constante
eterno

(18)
fonte d´água
viva
limpa

(19)
caminho por entre
trilhas do agora
outrora

(20)
persisto em ilhas
continentais
aurora

(21)
resisto
para além dos preconceitos
boreal

(22)
pressinto
a palavra nova
ancestral

(23)
as flores astrais
macunaíma
elementais

(24)
a parada gay
arco-íris
acima de toda ley

(25)
retorcer o ego
ladino
ponto cego

(26)
refundar o ser
desperto
vir a crer

(27)
desnudar os mitos
ocos
rebrilhar os ritos

(28)
anoitecer a vaidade
libido
alter-ego

(29)
todos os sons
benvindos
do silêncio

(30)
todos os tons
vividos
na contemplação

(31)
renascimento
sopro suave
na face, o vento

(32)
no coração do Brasil
pérola negra
sob o céu anil

(33)
no ventre da noite
ressoa
sob o plexo, o verbo
[incerto

nem um milhão de panelas
irão demolir nossa memória
tampouco apagar nossa história
nem nos fechar a janela


Poesia em homenagem a Pagu declamada por Jeyne Stakflett na abertura da mostra Divergência Estética - Capítulo 1, que ocorreu no teatro Centro da Terra. 

O evento teve curadoria de Gabriela Inui e reuniu obras e apresentações de Mauro Restiffe, Ronaldo Grossman, Paloma Klisys, Rodrigo Erib, Maitê Bueno, Rodrigo Garcia Dutra, Jorge Bassani, Francisco Zorzete, Juliana Freire, Alpa Kamashka Akasha (El In-Cantante di Serpientes Majestosas), Roger W. Lima, Renato Anesi, Pedro Vicente e Tiel Del Valhe.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

árvore da vida

The Pink Peach Tree
Vincent van Gogh
abril-maio de 1888

Curiosa a confluência do destino rumo ao seu desígnio. À procura das eternas nascentes. Ao desvario. No caminho das suavidades perenes. O acaso, volátil, transforma como uma supernova. Esparge, sutil, a subverter versos alados, a desenhar retratos retintos, a ecoar gritos calados. Jamais saberá sobre o sal da terra aquele que não anda descalço. Jamais sentirá o gosto de sol aquele que não repousa no regato. Numa cena em uma aldeia no Japão medieval eu ingresso imperceptível, como uma borboleta multicolor a mimetizar a natureza, a transcender o tempo e o espaço. A criar distopias. Utopias. Sinfonias. Voa, a alma, como condor. Flutua, o sopro, como beija-flor ao vento. Ressoa o realejo, em overdrives de guitarra gitana - filigrana. A força da gana que constroi coisas belas. Respiro e transmudo, cavaleiro andante. Teu espelho é o sorriso pintado da lua no ceu.

sexta-feira, 15 de março de 2019

soul condor



soul libre
intero
viajero 
soy salitre

soul condor
indígena
alienígena 
soy esplendor

soul farol
bueno
sueño
soy sol

soul flor
esperanza 
crianza
soy amor

supernova




fogo-fátuo


alumia


da estrela 


ao átomo 


alma reluz


o brilho


da supernova 


que já foi


e será


eternamente


a iluminar


o que se vê 


e se sente


lua crescente


do Sol


sempre nascente


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

ecos


vozes ecoam pelo bosque
repleto de fantasmas, pássaros
- lágrimas 
escorrem -
sobrevoam as árvores
e as cobras rastejam
sob a luz da lua.

(quem têm medo da morte?)

a imagem do sonho desvanece
o reflexo na água escurece
mil rostos em um
homem de lugar nenhum
a vaidade é cadafalso
no lodo, a mais breve lembrança 
enternece.

(quem têm medo do amor?)

ecos ressoam pela floresta
repleta de traumas cor de cobre
- olhos
descerram - 
no desfolhar da noite 
o sonho remonta
entre odores e flores
borboletas flutuam
sob a luz do sol.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Tempo da muda

Gaia reborn (2015)
Jan Kasparec


no tempo da muda

é preciso entender

a renovação que chega

e desaparecer

para renascer

saber perecer

para de novo ser

pois é preciso

continuar

a ampliar

sempre

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

polifonia


Soleil couchant à Etretat - Claude Monet - 1883


palavras podem 
ser
refúgios

acordes 
transformam
ruídos

poesias 
acolhem
soluços

que a música 
sussurrou
em meus ouvidos

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Sangrar até curar?


Uma história. Qualquer que venha a ser. Inventa. Hoje. Não para no pensamento. Sai da razão. Deixa fluir o devir. O que não se sabe. Id. Memória oculta. Realidade. Dualidade. Tarancón remonta à saudade. À lembrança. Voz ancestral. Tambor. Amor e dor. Pulsante. Energia que sai. De si. Em Si. Bemol. Sol. Sustenido. Ressoa. Aquece. Não fica em casa, não. Fica. Vai. A noite sagrada. O ritual se inicia. Faravahar. Jornada madrugada adentro. A luz. A montanha. Me vejo voando ao redor da lamparina que imagino a iluminar minha cabana. Ou seriam pirilampos? (será que eles falam esperanto?). Para, vai, pra que todo esse pranto? Para o homem que inventou o fuzil, pra que tanta matança? Menos sangue e mais dança. Alegria. Criança. O circo platinado acaba de pousar aqui ao lado, vejo pela minha janela. Vamos ver o bêbado equilibrista e a acrobata maluca. Dizem que a fama da dupla arrebata multidões em galáxias distantes. Dentro de um sonho, vocês podem se perguntar. Mas por hora apenas digo que já estou dentro do picadeiro - e o palhaço me chama para uma conversa sobre a flexibilidade do rabo do crocodilo. Em face ao rabo da lagartixa, o que difere? Gracias a la vida nada é igual, tão únicos são os gestos mais simples e distantes, como o olhar de uma aldeã ao horizonte deserto naquela manhã de 13 de dezembro de 1417, numa vila próxima à Vladivostok, ao lembrar do único beijo trocado com o homem - ou seria mulher? - que ainda amava, e ama. Enquanto destinos se afastam, caminhos se encontram, se reconhecem, se cruzam, sempre. E o que se busca? O vislumbre? Ou seria o relance? "La vida és eterna em cinco minutos". Te Recuerdo, Amanda. Linda canção de Victor Jara. Pinochet, que se se prestasse a ser humano somente por cinco segundos, não o destroçaria, como o fez, assim como com o sonho chileno. O sonho será sempre a utopia do possível e, por tal, eterna contradição? Tá tudo tranquilo, afinal. Tudo bem, vou ser um pouco sincero: por vezes tenho suado sangue. Mas não será sempre assim, mesmo? Sangrar até curar? Fazer a ferida pulsar, feito magma. Até sublimar? Que vontade de ver o mar...


segunda-feira, 24 de julho de 2017

Fênix

(Foto: Tiel Lieder)

Desaparecer
entre desencontros
ledos escombros
desvanecer.

Refundir
a essência inata
a beleza flauta
ressurgir.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Mulher imensidão





Mulher coração
Tua vibração enternece
Mulher emoção
Tua anunciação precede

Mulher aluvião
Teu ventre aquece
Mulher encarnação
Teu seio ascese 

Mulher sofreguidão
Teu pensamento enlouquece
Mulher sedução
Teu perfume permanece

Mulher criação
Tua imaginação insondável
Mulher revolução
Tua intenção venerável

Mulher natureza
Tua nobreza sinfonia
Mulher fortaleza
Tua certeza assovia

Mulher mundo
Teu caminho eterno
Mulher profundo
Teu sopro moderno

Mulher cor
Teu arco-íris a sonhar
Mulher flor
Tua íris a brilhar

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Brasil moribundo

Caça ao Leão (esboço) - Eugène Delacroix - 1854


Perdida, debalde

Em algum lugar

Entre o céu e o mar 

Desaba, em oculto arrabalde


A verdade

Pesada como o chumbo

Abatida, sem piedade

Neste Brasil moribundo










quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Voluntad



Voluntad

El mover

El ser

Rumo al amanecer

De una nueva era

De un nuevo hombre

Más mujer

Y de una nueva mujer

Más espíritu

Y una nueva consciência

Y juventud

De un nuevo aire

Más leve

Más limpo

Más breve

Y perene

Un nuevo sentimiento

Más fraterno

Y más sereno

Un encuentro

Un sufrimiento

La búsqueda

De la cura

De la sanidad

Todos somos

Unos

Todos somos

Todos

Nada somos

Y de la nada

Que desear

Que esperar

Limitarse

Viene redivivo

Infinito

Solar

Lunar

El mar

Tantos universos para desentrañar