quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

o passado é uma roupa que não nos serve mais



penso em herzog
aqui na frente dos escombros
da casa em que vivia 
e de onde os algozes
o sequestraram
e levaram rumo ao martírio
no lugar onde devia haver um memorial
resta apenas o pó
- e a especulação imobiliária -
dum país cuja memória se
esvai, transviada em palavras
cínicas, cafajestes
daqueles que torturaram e
mataram e tristemente
voltaram, sinistros
recalcados
com seus coturnos
e sapatos bem engraxados
porém nada polidos
a esmagar verdades
liberdades
a concentrar rendas
e preconceitos

(...)

penso
e de tanto pensar
lembro de belchior
"o passado é uma roupa 
que não nos serve mais"

(...)

sinto
a natureza
em sua florescente beleza
sob o céu anil
raios de sol acariciam
minha face úmida
secam o sal
de meu lamento surdo
escurece o dia
poeira em nuvens de morte
índios abandonados à nenhuma sorte
cinzas e sangue se misturam
num pesadelo
num desatino
sem sonho nem poesia
sem direitos nem alforria
como a mais bela tribo
esmagada por ser inocente

(...)

sinto
e de tanto sentir
lembro de chico buarque
"amanhã, vai ser outro dia".

mulher moderna

Pagu

veludo azul
mar sem fim
em cada sul, um blue
perfume de jasmim

beleza sagrada
olhar celeste
gata rajada
o sol, ao leste

voz sibilina
respirar imenso
reluz, serpentina
sopro tão denso

te vejo num filme
de cassavetes
ou fellini
em uma, mil vedetes

voa, natural
primavera eterna
sonho inaugural
da mulher moderna


Camille Claudel


ego em ruptura: um ode o passado presente no futuro



(1)
tu vens, tu vens
eu já escuto
os teus sinais

(2)
envolta em brumas
ela surgirá
vinda da dimensão nova

(3)
encontro inevitável
sentimento imorredouro
sonho

(4)
o modernismo
de ser humano
transmutar

(5)
acima das formas
há o gênio
de Rimbaud

(6)
além do tempo
há a energia
de 22

(7)
além das máscaras
há a leveza de Pagú
verdade e liberdade

(8)
além dos excessos
há as linhas – setas
rumo ao futuro

(9)
dançando a polca
sobre o Atlântico
Warchavchik chegou para inaugurar

(10)
o novo tempo
Tarsila, Oswald
Mário – contratempo

(11)
a água
lavou
meus ouvidos

(12)
e ao ouvir
melhor
maior

(13)
escutei
o rumor
da cachoeira

(14)
percebi
o som
dos pássaros

(15)
e tudo
ficou mais claro
Abaporu, em meu peito nú

(16)
casa aberta
arte ampla
descoberta

(17)
fluxo d’água
constante
eterno

(18)
fonte d´água
viva
limpa

(19)
caminho por entre
trilhas do agora
outrora

(20)
persisto em ilhas
continentais
aurora

(21)
resisto
para além dos preconceitos
boreal

(22)
pressinto
a palavra nova
ancestral

(23)
as flores astrais
macunaíma
elementais

(24)
a parada gay
arco-íris
acima de toda ley

(25)
retorcer o ego
ladino
ponto cego

(26)
refundar o ser
desperto
vir a crer

(27)
desnudar os mitos
ocos
rebrilhar os ritos

(28)
anoitecer a vaidade
libido
alter-ego

(29)
todos os sons
benvindos
do silêncio

(30)
todos os tons
vividos
na contemplação

(31)
renascimento
sopro suave
na face, o vento

(32)
no coração do Brasil
pérola negra
sob o céu anil

(33)
no ventre da noite
ressoa
sob o plexo, o verbo
[incerto

nem um milhão de panelas
irão demolir nossa memória
tampouco apagar nossa história
nem nos fechar a janela


Poesia em homenagem a Pagu declamada por Jeyne Stakflett na abertura da mostra Divergência Estética - Capítulo 1, que ocorreu no teatro Centro da Terra. 

O evento teve curadoria de Gabriela Inui e reuniu obras e apresentações de Mauro Restiffe, Ronaldo Grossman, Paloma Klisys, Rodrigo Erib, Maitê Bueno, Rodrigo Garcia Dutra, Jorge Bassani, Francisco Zorzete, Juliana Freire, Alpa Kamashka Akasha (El In-Cantante di Serpientes Majestosas), Roger W. Lima, Renato Anesi, Pedro Vicente e Tiel Del Valhe.