quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sob a chuva torrencial ela sentia


Ela caminhava sob a chuva torrencial e sentia a roupa grudar em seu corpo. Quando a árvore caiu na sua frente, pensou em desistir, mas lembrou das razões que a motivavam a esquecer de si mesma e, então, decidiu prosseguir.

Calada, apreensiva, distante. Não fazia parte daquele mundo. Sentia vergonha de si mesma. Como podia ter deixado muito, tudo, por causa de um amor tão perecível, abstrato, fugaz... Desnudo.

O cheiro de si mesma a incomodava. Não gostava de seu perfume nem de suas formas. Acreditava que a outra era mais atraente e não percebia, era o espelho que mirava.

Em seu conflito, espiritual, sentia uma angustia que lhe tocava a alma. Percebia a futilidade dos conceitos, vislumbrava reflexos distorcidos, ledos enganos a ceifar sua realidade.

A errante caminhada que insistia em seguir era a face rubra de seus imprescindíveis desatinos. A força, inerente à sua condição – à toda condição – sufocava-a, tal qual a agonia do condenado aguardando a guilhotina tocar-lhe o pescoço teso.

Suas certezas dissolviam-se feito dunas, desafiando concretas perspectivas, questionando iluminações que a matéria insiste em renegar.

Olhou novamente a árvore caída, absorvida pela força da natureza, morte e vida a invadir-lhe as entranhas, estranhas visões...

Começou a delirar, e em seu delírio até mesmo sonhou. Conversou com o vento, e voou. Pelo céu brumoso flanou. Em instantes. E tão logo voltou, já não se encontrou. Revolvida pela emoção, notou:

- Vou buscar o que é belo, em mim. Vou fazer minha alma sorrir, em todos.

A chuva persistente, não mais que num repente, de repente parou. E como se os astros e os anjos conspirassem junto aos deuses e aos santos, o conflito cedeu. E ela, no encanto da descoberta do próprio entendimento íntimo, comoveu o mundo inteiro. Que, enfim, se entendeu.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Provérbio chinês

A inteligência caminha mais longe que o coração
porém não chega tão longe

Cortázar


Meses atrás descobri um livro surreal do escritor argentino Julio Cortázar - nenhuma novidade, posto que o surrealismo era uma das sendas por onde este trafegava com maestria.

"O Último Round - Tomo I"
(Editora Civilização Brasileira) é uma colagem de artigos, contos, ensaios, poemas, fotografias, delírios, e traz algumas pérolas, como o conto "Silvia", onírica viagem pelo universo infantil.

Também traz algumas frases que Cortázar podia ler pelas paredes das universidades de Paris, cidade na qual vivia quando escreveu a obra, em 1969, ecos dos movimentos estudantis que agitaram a capital francesa um ano antes.

O álcool mata. Tomem LSD (Nanterre)

Amai-vos uns sobre os outros (Faculdade de Letras, Paris)

Sou marxista da tendência Groucho (Nanterre)

Dormindo se trabalha melhor: formem comitês de sonhos (Sorbonne)

E entre a narração das férias de um turista em meio a indiano miseráveis, um artigo dando conta do imperialismo norte-americano, o ensaio sobre o conto perfeito, contos quase perfeitos e homenagens a Alain Resnais, o poema:

Não fazemos outra coisa,
o impossível é o pão em cada boca,
uma justiça de olhos lúcidos,
uma terra sem lobos, um encontro
com cada fonte ao final do dia.
Somos realistas, companheiro, vamos
de mãos dadas do sonho à vigília.

ps: Recomendo não só este livro de Julio Cortázar, como também o romance "Os "Prêmios".

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Ava


Ava. voa em sua voz grave; ressoa no palco ali na choperia do sesc pompéia... fazia frio naquela noite de terça em sp, um 14 de julho um tanto melcancólico, garoava, e poucas pessoas se arriscaram a sair de casa, para ouvir aquela voz singular. ao seu primeiro timbre, impacto. sensação crescente. e eu maravilhado, vendo a moça desfiar notas fortes, intensas como ela, junto a uma banda afiadíssima. Ava, filha de Glauber Rocha; sim, o cineasta baiano. herdou do pai o talento inusitado, para criar, nas brumas da imaginação, a arte original. inaugural. visceral. real. e a noite, que se fazia apenas mais uma, tornou-se imortal. Ava.

[como dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras, ei-la, a artista...]