segunda-feira, 29 de agosto de 2011

7 centímetros

Seu dia havia sido difícil. Pelo menos, ele assim o percebera. Pudera, desde que abrira os olhos pela manhã (despertara?), tudo o mais lhe irritara: o acordar cedo, o formato da pia do banheiro (e o seu nariz no espelho), o perfume do café, o beijo da mulher. No ônibus, seu drama continuara. À falta de lugar para sentar, mesmo as frágeis (?) velhinhas pareciam-lhe como latifundiárias a usurpar o seu quinhão de terra e amplidão - o pão. A chegada ao trabalho trouxera a saudade do certeiro estilingue com que abatera variadas espécies voadoras na infância. Até mesmo morcegos, e outras aves estranhas. É, o dia havia passado. Pensamentos estranhos sobrevoados. E ele, ainda enfurnado no mau humor dolente, algo um tanto silente, apesar de poente. Quando, de repente, o labirinto lhe pareceu claro, como a mais profunda imensidão. Para que limitar, frente ao infinito? E num repente, o mau humor se desfez. Alegria refez. A cor profunda nesse coração. Tudo muito bonito, tudo muito poético. Bem que poderia ter sido assim, sua percepção sobre a própria chatice e obtusidade. Mas não; como é de praxe ao ser humano, ele aprendeu pelo susto, pelo assombro, pelo choque. Em uma briga de trânsito, para ser menos evasivo - é, a névoa da cidade anda densa, as pessoas tensas, com presa de chegar e continuar sem estar. Pois bem, a briga nem foi com ele, que estava, ali sentando no ônibus, no caminho de volta pra casa, como quase sempre pensando em si, absorto em divagações sobre os seus problemas (a comida do refeitório, a falta de reconhecimento de todo o mundo em relação ao seu talento e valor, o excesso de compromissos, o fato de ainda não ter comprado os últimos modelos de IPhone e IPad, a derrota de seu time do coração, a louça que sua mulher não havia lavado, a incompetência das pessoas, em comparação com a sua, a gripe que lhe doia o corpo...). Estava lá dentro, encolhido no desconfortável banco, quando uma voz, a princípio distante, depois bem clara, acompanhada de uma estridente buzinada, disparava um sonoro "vai se foder, porra!" - era o motorista de um carro que estava engavetado pelo ônibus que servia de transporte para o nosso herói retornar de seu calvário cotidiano. "Fica aí atrás mesmo, seu otário! Se tá com pressa, pega um helicóptero", retrucou o motorista. O motorista explodiu: subiu com o carro na calçada e passou à frente do ônibus, impedindo sua passagem. A mão estendida para fora empunhava uma arma. O disparo, seco, entrou pelo vidro dianteiro, longe do motorista. A bala viajou e passou frente aos olhos de nosso indócil personagem. A sete centímetros de sua cabeça, a máscara rubra da morte entoou sua sinistra cantiga. E o fez pensar em tudo aquilo que deixava de pensar. Se ele mudou depois disso? Se parou de reclamar e passou a agradecer tudo que tinha, a vida que levava? Se notou o quão ampla e ao mesmo tempo fugaz a vida por ser? Não há notas sobre isso. Apenas alguns boatos dão conta de que, depois de quase morrer, ele começou a viver, enfim.

sábado, 27 de agosto de 2011

Tente

Tente chorar hoje

com tristeza

ou alegria

as incertezas da vida



Tente sentir hoje

com certeza

ou arredia

a eternidade da vida



Tente cantar hoje

com verdade

ou utopia

a melodia da vida



Tente compreender hoje

com sabedoria

ou aflita

a grandeza da vida



Tente compartilhar hoje

com reservas

ou desprendida

o repasto da vida



Tente recordar hoje

com saudade

ou nostalgia

a beleza da vida



Tente amar hoje

com sinceridade

e verdade

toda tua vida