segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A carpideira

Lúgubre era a fachada daquele antigo casarão. Ainda mantinha resquícios da longínqua imponência, é certo, mas já não passavam de fugazes vislumbres de um tempo esvaído no acumulo das impressões. Ficava em uma rua pouco movimentada de São Paulo, defronte a uma praça singular, porque torta; passear nela era uma experiência estranha, tudo ficava sob uma nova perspectiva. Talvez pelo surreal da situação, poucas pessoas se aventuravam a caminhar nessa praça.

Laetitia era uma delas. Costumava andar pelo local, era um dos poucos espaços onde se sentia à vontade. Talvez por ser quase deserta. Não que sentisse aversão ao convívio social. Esforçava-se por simular um sorriso ou dissimular uma quase indisfarçável tristeza. Mas seu semblante revelava indizível melancolia, e talvez por isso mesmo ninguém se importasse muito com ela. A bem da verdade, sempre fôra extremamente acanhada, quase arredia; e assim, naturalmente solitária.

Mas o fato é que Laetitia morava exatamente no referido casarão. Já há longo tempo só, tinha perdido contato com parentes – afora aqueles que vez ou outra pressentia, sobre o que por hora não cabe discorrer. O que convém revelar é a sua ocupação: Laetitia era carpideira.

Descontando o componente insólito, pode-se dizer, com efeito: era algo que a movia visceralmente. Mais além, é justo afirmar, não podia ficar sem trabalhar. Precisava compartilhar a dor do outro. Era como um alimento, as lágrimas alheias reascendiam a vida em seu olhar fugidio, iluminando a palidez de sua face linda. Mas ao contrário do que se possa imaginar, Laetitia não aceitava qualquer trabalho. Ela escolhia aonde deveria sentir a dor do mundo. Seu rumo diário era definido invariavelmente do mesmo modo: a viagem pelas páginas do jornal promovia o encontro, sinal direto a indicar o próximo passo.

“Casal de jovens amantes morre em dois trágicos acidentes de carro.” O interesse capturado levava seus olhos à intimidade dos detalhes. “Guillermo Villabiom Montalban & Guerrero e sua noiva Angelita de Jesus & Jesus faleceram na noite desta sexta-feira, vitimas de duplos e simultâneos acidentes de trânsito. Coincidência trágica, os dois acidentes ocorreram com poucos minutos de diferença, em pontos distintos de Buenos Aires.”

Sentindo o corpo estremecer e arrepios a percorrerem-lhe a espinha, Laetitia decidiu conhecer a capital portenha. Rapidamente encontrou o cemitério Rio da Prata. Observando sem ser vista, sentiu as duas famílias congregadas no silêncio da desesperança. Levando as mãos ao rosto lívido, enxugou lágrimas sentidas e, em êxtase, orou pela alma em transição.

Quando percebeu, estava novamente na praça, em frente à sua casa. Fraca, sentiu as energias esvaírem-se-lhe. Dormiu ali mesmo. Sem saber se sonhava, viu-se em vasta praia. Estirada na areia, absorvia o sol escaldante com um jornal nas mãos. Nele, uma das manchetes dizia: “No Congo, 39 pessoas são queimadas vivas – a maioria mulheres e crianças.”

Sufocou as lágrimas e levantou-se resoluta. Sem saber o que a movia, caminhou sem cessar até chegar àquela grande vala coletiva, na qual poucas pessoas cumpriam um cotidiano ritual sem perder a dignidade humana. Como de costume, esgueirou-se sem ser percebida por entre olhos fundos e cansados, até estancar defronte a uma garota de expressão tangida e inerte. Levando as mãos ao rosto lívido, enxugou as lágrimas sentidas e, em êxtase, orou pela alma em transição.

Quando percebeu, estava em seu quarto, absorta em lembranças do passado ainda presente. Como as forças lhe faltassem, adormeceu profundamente. Acordou com o toque telúrico de uma intensa lufada de vento e, por instantes, imaginou ter despertado em uma outra dimensão. Logo percebeu tratar-se de uma fresta na janela de seu já não tão acolhedor quarto. Levantou-se lentamente, como se em transe estivesse. Conseguiu, por fim, vencer os degraus e alcançar a escura sala. Lá estava o jornal. Mal pousou os olhos profundos nas páginas da gazeta, vislumbrou um novo destino.

“Criança iraquiana morre após ser atropelada por tanque norte-americano.” Frenesi intenso assomou-lhe o corpo translúcido e, com o sentimento do mundo vibrando em seu íntimo, revelou-se à sua vista a imagem de uma antiga e devastada Babilônia. Não atuaria em um cemitério, desta feita. O enterro, simples e sem recursos, seria feito no quintal de paupérrima casa; a cerimônia carecia até mesmo de um caixão, substituído por uma caixa de papelão empapada de sangue e revolta. Postou-se ao lado de uma jovem com expressão atônita e, sem ser percebida, cumpriu o ritual. Levando as mãos ao rosto lívido, enxugou as lágrimas sentidas e, em êxtase, orou pela alma em transição.

Ao retirar as mãos dos olhos úmidos, pôde enxergar uma paisagem familiar. Era a fachada do antigo casarão em que morava. Notou então, como nunca antes notara, as paredes sujas, e imponentes árvores cercarem a casa, invadindo-lhe os espaços descuidados. Não reconheceu seu lar. Por um momento, não reconheceu a sim mesma, perdida em pensamentos desconexos.

E então viu aquele monte de folhas velhas soltas em um banco da praça. Que se transformaram, como já observou Cortazar certa vez, em um jornal, nas mãos geladas e ao mesmo tempo cálidas de Laetitia. As letras ganharam forma e compuseram as palavras de uma notícia curiosa:

“Mulher é encontrada morta pela filha depois de seis meses.” Quer pelo inusitado do ocorrido, ou pelo mórbido, Laetitia deixou-se levar pelas linhas reveladoras, que diziam: “Laetitia Munari Okhnaré, 66 anos, foi achada morta em casa pela filha, Riva Munari Okhnaré, no bairro de Vila Romana, nesta Capital. O corpo da falecida jazia na cama e, segundo o legista que acompanhou o caso, a mulher estava morta há mais de seis meses. De acordo com Riva, esta não visitava a mãe fazia oito meses, desde que tiveram uma briga durante a noite de Natal.”

Com o coração aos saltos, abriu-se um clarão para Laetitia. Esse seria o último ato de uma vida até então inexplicável. Choraria em seu próprio enterro. Celebraria a ansiada libertação. Os caminhos seriam outros a partir desse momento. Apressou-se em chegar ao cemitério da Eternidade. Ninguém acompanhava o sepultamento. Nem mesmo a filha. Laetitia deu início ao ritual. Levando as mãos ao rosto lívido, enxugou as lágrimas sentidas e, em êxtase, orou pela alma em transição.

Quando retirou as mãos do rosto, já não reconhecia o que via. A claridade leitosa iluminava um ambiente aconchegante. Vozes familiares invadiam-lhe os ouvidos. Reconhecendo a si mesma, sorriu, com a leveza esquecida nas cavernas de um íntimo antes destroçado. Estava livre agora. Então pôde ver como era lúgubre a fachada daquele antigo casarão. Mas não importava. Aquele mundo já não era mais seu.