sábado, 15 de outubro de 2011

Narrativa inspirada em Abutre, de Gil Scott-Heron

Várzea




Acabara de chegar ao campo de terra que, além de arena de clássicos embates da várzea paulistana, servia como entreposto para a venda daquelas substâncias que se convencionou denominar como drogas.



Escapara à vigilância do patrão, da esposa, da sociedade, de si mesmo



– naquela tépida tarde de terça-feira –



em busca duma dose pra longe de sua própria realidade



– desatinos em nada baseados.



Alguns garotos batiam bola num canto do campo, outros empinavam pipas, e algumas crianças corriam, apenas.



Logo viu Êh, ali nos fundos do grande terreno que abrigava o Estrela Dalva, veterano time de várzea da zona norte de São Paulo:



– Fala Eh, beleza?



O mercador de loucuras urbanas rebateu:



– Fala rapaz, certinho? Qual é a boa?



O sol começava a arder.



– Tem um chá aí?



Êh ralhava com um menino e uma menina – seus filhos – que se sujavam brincando no chão de terra.



– Cara, cê deu sorte; chegou um bom ontem. Vai querer quanto, tem de dez e de vinte?



– Me dá um de vinte...



Logo ao lado, no barranco que dá pra rua de baixo, Êh pegou a marijuana escondida. O viajante pegou a nota de 20. Trocaram gentilezas. E começaram a preparar um baseado.



– Eaí, como estão as coisas por aí?



Êh ainda não havia convencido seus filhos a deixar de rolar pelo chão de terra.



– Tá foda, os cara tão em cima... ontem mesmo a Rota pintou por aí...



A tarde fazia-se cada vez mais alaranjada, naquela tez do deserto, típica cor do verão. Nisso chegou Emejota, que passava o bagulho no campo do São Cristóvão, co-irmão e antigo rival do Estrela Dalva, logo ali a três quadras de distância.



- Eaí, beleza?



- Como tá o movimento lá embaixo? – perguntou Eh.



O rapaz (não devia passar de 17) estava sem camisa – e agitado.



- Porra Eh, os cara viero com tudo em cima pra cima de mim! Metendo os cano, queriam me empurrar o bagulho... Falei que não era meu e o cara engatilhou, falou que ia estourar minha cabeça! – narrava Emejota, olhos esgazeados, ardendo. – Mano, foi foda...



Êh não esboçava reação enquanto olhava a cara assustada de Emejota. O viajante observava os dois traficantes discutindo, e sentia o medo do jovem, falando do enquadro que tinha tomado, e o desespero, ainda vivo, latente, em seus olhos.



- Achei que não ia sair dessa, véio... – disse, pra depois pegar o seu filho, que brincava com a menina de Êh, e sumisse morro abaixo.



Quando o baseado queimou-lhe os dedos, Êh enfim cansou-se de ralhar com os filhos e os levou para dentro de casa. Não sem antes descolar para o viajante o fumo que este havia ido buscar.

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